Eu, residente neste
enclave entre Portugal e Espanha, onde os dias passam iguais aos dias que
sempre foram, ciente de que não tenho nada de interessante sobre que possa e
deva escrever, optei por ir divulgando o que outros, com mais oportunidade, com
maior interesse, com melhor saber e mais aguda inteligência, vão escrevendo
sobre o que se passa e se pensa, lá por fora, onde a vida continua a acontecer.
Como membro
de uma minoria em extinção, pelo menos no topo do meu partido, o PSD, a dos
social-democratas, não se espere de mim nem uma palavra de justificação por
aqui estar. Bem pelo contrário, farei a muitos a pergunta de por que razão não
estão aqui de corpo, já que de espírito muitos estarão. Não os represento, não represento
ninguém a não ser a mim próprio e mesmo assim de forma bastante imperfeita, mas
os tempos não estão para inércias nem para confortos, nem para encontrar
pretextos do passado, ou diferenças no futuro, para não se lutar, não pelas
mesmas coisas, mas contra as mesmas coisas. Em momentos de profunda crise, tem
que ser assim, sempre foi assim, e esse é o sentido mais profundo deste tipo de
iniciativas de Mário Soares. O incómodo que geram, no poder e na oposição, vem
disso mesmo.
(…)
Na verdade, estranha assembleia
esta que junta quem quer rasgar o memorando e colocar delicadamente a "troika" na
rua, quem a quer colocar na rua menos delicadamente, com quem aprovou o chamado
Pacto Orçamental, com quem pensa que o memorando, filho da necessidade extrema,
podia ser aplicado de modo muito diferente, sem o rastro de incompetências e
mistelas ideológicas deixado nestes dois anos.
E nem sequer estou certo que o
que nos une seja o lema deste encontro: “Em defesa da Constituição, da
democracia e do estado social". Não me entusiasma como lema, ninguém se
mobiliza por uma lei, mas por aquilo para que essa lei serve, ou aquilo que
essa lei defende: democracia, confiança, soberania, contrato social. Ninguém se
mobiliza pelo “estado social” que é muitas vezes uma abstracção ideológica.
Mobiliza-se por que todos possam ter uma vida decente, saúde, educação,
segurança, – muita gente esquece-se que existe também um direito à segurança, –
e para que ninguém possa ser excluído desses bens básicos porque não tem
dinheiro. E se alguns podem, devem apoiar os que não podem, não como caridade
ou assistência, mas como forma natural de viver em sociedade. Tão simples como
isso. Vem no Programa do PSD escrito por Sá Carneiro, vem na doutrina social da
igreja.
(…)
Mas, acima de tudo, custa-me a
ideia de que o papel dos que aqui estão seja apenas “defender” como se
estivessem condenados a travar uma luta de trincheiras. Não, os que aqui estão
não estão a defender coisa nenhuma, mas a atacar a iniquidade, a injustiça, o
desprezo, o cinismo dos poderosos para quem a vida decente de milhões de
pessoas é irrelevante, não conta, é um “custo” que se deve “poupar”. A
transformação da palavra “austeridade” numa injunção moral serve para um
Primeiro-ministro, apanhado pelo sucesso dos celtas, sorrir cinicamente para
nos dizer que a “lição” da Irlanda é a ainda precisamos de mais austeridade,
ainda precisamos de mais desemprego, ainda precisamos de mais pobreza. E sorri
muito contente consigo mesmo.
O discurso de contínua mentira e
falsidade que nos diz como se fosse uma evidência, que “as empresas ajustaram,
as famílias ajustaram, só o estado não o fez”, como se as três entidades fossem
a mesma coisa e o verbo “ajustarem” significasse o retorno a um estado natural
das coisas de que só o vício de quererem viver melhor afastou os portugueses.
Na verdade, pode-se dizer que “as empresas ajustaram”. Sim algumas “ajustaram”,
mas a maioria “ajustou” falindo e destruindo o emprego, - que para quem não tem
outra “propriedade” é o seu modo de vida. As famílias não “ajustaram”,
empobreceram e estão a empobrecer muito, para ter que ouvir como insulto os
méritos de perderem a casa ou o carro, ou a educação superior para os seus
filhos, e o valor moral de deixar de comer bife e passarem a comer frango.
(…)
José Pacheco Pereira,
In,
EM DEFESA DA CONSTITUIÇÃO, DA DEMOCRACIA E DO ESTADO SOCIAL, 21 de Novembro
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